quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Discurso de Alexandre Castanheira na apresentação de "O Ciclo da Serpente", de António Vitorino, em Almada


Sr. Director da Biblioteca Municipal de Almada
Senhores Poetas convidados
Senhores Poetas participantes
Senhoras e Senhores, Amigos

Existe em Almada um homem de que os habitantes interessados pelas coisas da cultura e da literatura ouvem falar, lêem em jornais e revistas, deliciam-se com a leitura do seu blog, escutam-no a dizer poemas seus nas poucas ocasiões a que se dispõe a tal e por quem perguntam muitas vezes "o que é feito dele?" nos variados silêncios a que se entrega e nos diferentes desaparecimentos de que desconhecemos as mais das vezes a razão.

Este homem, é assim, como dizer? Talvez mal comparado, como o concelho de Almada - tem vida própria! Por muito que isso custe a algumas pessoas que, em vez da sua actividade criadora, gostariam era de conhecer em pormenor como ele vive, como se situa nesta terrível sociedade em que todos vivemos livres (segundo a Constituição da República) mas, na realidade, prisioneiros de leis e regras para que não contribuímos nem ninguém nos pede opinião, enclausurados, espiados, constrangidos a uma vivência em que só nos é permitido sobreviver como Humanos. E porque tem vida própria, reage, decide, interroga, recusa, ri, despreza, ajuda, bate-se, fazendo assim parte de um pequeno (pequeno à escala da população global do País, mas que ainda conta talvez com uns milhares) ... de um pequeno número de seres independentes que se mantém fiel à directiva libertária de Ary dos Santos: "podem acusar-me de tudo... mas poeta castrado, NÃO!"

Pois agora esse homem, registado no mundo literário como ANTÓNIO VITORINO, resolveu abrir a arca dos seus segredos, por alguns considerados mistérios, e dar-nos a possibilidade de o conhecer melhor. No passado já tinha editado, na colecção Index Poesis, três cadernos com obra sua, mesmo que um deles fosse assinado por um tal Affonso Gallo.

(Deixem-me revelar-vos que este pseudónimo o tornou desde logo meu primo! É verdade: na antiga vila de Almada, toda a família Castanheira de operários da construção naval, e da Parry em particular, era conhecida pelo apelido Galo. Do nome de uma quinta situada na encosta que vai do actual Centro Sul para o Pragal, para onde foi trabalhar, vindo da região de Arganil, um meu bisavô. Ao formar família, ficámos todos a ser o Manuel Galo, o Alexandre Galo, etc. E esta, hein, Vitorino?)

Mas agora é sua decisão publicar toda a obra poética que escreveu (já, bem entendido, seleccionada por ele). Não será fácil encontrar editor mas Vitorino não é homem para desistir. Há neste momento como que uma pressa de originar que isso aconteça. E tal pressa levou-o a publicar o livro que hoje aqui nos reuniu a todos e que devia ser uma das partes da grande antologia. Ele celebra dessa forma os 20 anos do produto do seu estado de espírito de então e o nível a que se encontrava o seu poder criativo.

Oxalá a serpente seja capaz de encontrar um editor conhecido e se enrosque no pescoço dele soprando-lhe ao ouvido: "não percas estes poemas! Não penses só em nomes conhecidos. Há outros génios a nascer, a crescer, a produzir poesia válida que precisa de ser divulgada. Não penses só no lucro que em geral queres meter na máquina registadora. Há outras formas de ganhar. Por exemplo, a do respeito que a todos merecerá o desafio que para ti representa editar novos valores, como o António Vitorino!". Que bom seria, por exemplo, aceitares o princípio defendido pelo Poeta Armindo Rodrigues: «Mais que o domínio ambicioso e imundo / importa a alegria sobre o mundo», sobrepondo um mundo bom às ruínas de um mundo horrendo.

Mas por que digo eu que essa publicação seria um abrir da arca dos segredos do Poeta? Penso que ele o faz também nesse sentido. Lança um desafio aos seus leitores para que leiam com atenção, meditem, reflictam, descubram através da sua obra poética as fases da sua vida, as suas alegrias, as suas dores, o enigma da razão para tais acontecimentos, alguns dos quais tenebrosos, desumanos, deprimentes, que, penso eu, o levam a refugiar-se nos braços da Poesia e, num debate entre ambos encontrar novas forças que o apeguem à verdadeira vida, ao florescimento dos seus ideais de amor, fraternidade e solidariedade.

Com este livro começa já a tomar forma o desafio que lança aos seus leitores de reconstituir, como se de um puzzle se tratasse, o retrato vivo de um homem que, repito o que escrevi no Prefácio, é das vozes mais originais da poesia almadense. Sarcástica, violenta, romântica sem pieguices, política sem ser panfletária, actual de todos os tempos, porque tem o Homem por dentro, porque sabe utilizar as palavras próprias, revolucionando-as algumas vezes, recriando-as de outras vezes.

Quando leio e aplaudo a força das palavras de Vitorino, vem-me à memória como o Poeta Sebastião da Gama falava das palavras: "O Poeta não tem à mão senão as palavras; joga com elas de modo a lisongear a Poesia naquelas qualidades divinas que lhe pressente - e como pressente que a Poesia é bela e é musical tenta imprimir beleza e musicalidade ao barro humano das palavras." Mas também como Eugénio de Andrade, esse outro grande Poeta, definia as palavras poéticas: «As palavras», declarou ele um dia, «são o ofício do Poeta (...), são a nossa condenação».

E explicava: «Com palavras se ama, com palavras se odeia. E suprema irrisão, ama-se e odeia-se com as mesmas palavras. (...) Perigosas ou inocentes, e ambas as coisas o são, as palavras são o mais veemente testemunho de fidelidade do homem ao homem.»

António Vitorino sabe escolher as palavras porque quando escreve os seus poemas, mesmo na maior solidão, fechado sobre si mesmo, é capaz de sentir-se na cidade de que falava Zeca Afonso - "cidade sem muros nem ameias / gente igual por dentro / gente igual por fora" onde o Poeta é o "Homem que olhas nos olhos / que não negas / o sorriso a palavra forte e justa". A palavra de Vitorino é forte e justa, precisamente porque no silêncio nocturno do seu quarto ou após passar a noite a dormir no interior de um automóvel ele é um Homem que olha nos olhos e não nega o sorriso. Sorriso, por exemplo, é simples palavra ou mais do que isso? Numa noite de desespero a palavra sorriso é apenas um esgar de rosto ou é um sol a iluminar e a bater-se contra a sombra, o negrume, a ideia de morte? A palavra sorriso, a palavra irmão, a palavra amor e todas, todas as palavras surgem do som musical que o piano cerebral de Vitorino toca ao espezinhar as venenosas ervas daninhas da indiferença, da exclusão, da ofensa, da violência. É caso para perguntar: estas palavras são fortes, sólidas? É então que sou levado a encontrar-me com o poeta Melo e Castro quando num poema afirmou: "as palavras só lidas são palavras". Ou seja, escrevo palavras sólidas e leio só lidas. António Vitorino obriga-nos a ler as suas palavras, a ir ao fundo delas e não a navegar somente à superfície, porque Vitorino se confunde com a sua palavra. É preciso lê-lo, navegar na profundidade da sua identidade e saudar a dádiva das suas palavras aos outros homens.

O livro que hoje lançamos pode ser a porta por onde passe, humana e transparente, essa sua não admitida nem virtual mas efectiva e real missão de Poeta. O meu desejo, António Vitorino, coincide com o que o extraordinário Poeta António Gedeão aconselhou a alguém que ele não nomeou, mas faço-o eu, endereçando-lhe os meus votos e nomeando-o a si, amigo: «que palpes, que oiças, que vejas / o sonho que anda contigo".

Por isso termino perguntando-lhe: será esse seu sonho (eu, por mim, penso que sim!) coincidente com o de Eugénio de Andrade, quando cantou "uma cerejeira em flor", com estas belas, harmoniosas e pacíficas palavras?

Acordar: ser na manã de Abril
A brancura desta cerejeira,
Arder das folhas à raiz,
Dar versos ou florir desta maneira.
Abrir os braços, acolher nos ramos
O vento, a luz, ou o que quer que seja:
Sentir o tempo, fibra a fibra,
A tecer o coração de uma cereja.

(Lido na sala Pablo Neruda do Forum Romeu Correia, em Almada, na noite de 16 de Dezembro de 2009)


Alexandre Castanheira