sábado, 7 de novembro de 2009

Uma efeméride motivadora


Texto de Alexandre Castanheira. Prefácio para o livro "O Ciclo da Serpente - premonições deveras líricas" (1989), poesia de António Vitorino, na colecção Index Poesis.


1.
Não sei a razão. Verifico simplesmente que, com alguma frequência, há pessoas (umas conhecidas minhas, outras praticamente desconhecidas ou quase) que se dirigem até mim com um maço de papéis ou um caderno nas mãos e, com uma aparente timidez, pedem-me para ler poemas seus e dar-lhes uma opinião sincera sobre o seu valor
.

Quem sou eu para lhes dizer, após uma leitura cuidada, que os poemas são bons ou maus? Só respondo por mim, pela minha reacção aos temas, à forma, ao estilo, no fundo ao agrado ou desagrado que ME provocam. Ou seja: gosto ou não gosto; pressinto, às vezes, que com um apelo meu a um pouco mais de trabalho há versos que poderão ser mais claros, mais belos, ou sinto que não merece mesmo essa pena: não passam de pensamentos que os autores estabelecem em determinados momentos de felicidade ou de angústia, de amor ou de revolta; aos autores diz-lhes muito pois ao lê-los revivem a situação e sentem as mesmas emoções do momento que descreveram.
A todos respondo com sinceridade, percebendo que desaponto alguns e entusiasmo outros. Ora eu apenas lhes transmito o que sinto, mais do que fruto de grandes análises literárias, ao sabor das modas de cada momento que por aí vão sendo criadas e elevadas a verdades geniais e universais, quer em artigos literários quer em decisões de júris de variados prémios. Apesar de tudo, com as minhas concepções, já fui responsável pela edição de livros de poesia de alguns jovens, também de um muito idoso poeta popular, e confesso que não me arrependi e os autores, desconhecidos até então, continuaram praticamente desconhecidos mas sem terem de se envergonhar da sua abordagem pessoal da Poesia.
Frequentemente, falta-lhes aquele toque do que a Poesia é capaz de oferecer em beleza, em profundidade, em calor humano, em generalização sentimental de algo que era individual. Outras vezes, (e foi o que me aconteceu agora), a beleza está ali, à nossa mercê. Ela possui-nos, emociona-nos, faz-nos reflectir. Surpreende-nos, incomoda-nos, permite-nos sonhar, precipita-nos para realidades que nos envolvem ou já estavam dentro de nós, numa invisibilidade só aparente.

2.
Não se trata de uma surpresa de agora pois ela aconteceu há anos. Nasceu num breve encontro na rua, mas à frente da Oficina de Cultura (nos tempos gloriosos em que esta se situava no Campo de São Paulo, antes de virar sala de teatro), numa noite de actividade cultural ao ar livre, em que as pessoas que assistiam podiam colaborar, subindo a um palco instalado diante da Oficina.

A certa altura, um jovem franzino, com um ar triste e como que envergonhado, subiu ao palco e disse um poema seu. Antes, como depois, poetas ditos com nome também o fizeram – era fatal: não lhes faltaram as palmas com que quase foi ignorado o atrevimento do jovem. Por mim, procurei-o, felicitei-o e entusiasmei-o a mais gestos de ousadia, a dar a conhecer mais poemas seus. E soube que se chamava António Vitorino.
Sugeri-lhe que me aparecesse na biblioteca da Incrível Almadense para conversarmos mas, infelizmente, tal não aconteceu. Aderira a uma associação de que eu contestava a existência em virtude dos seus objectivos reais hegemónicos no panorama cultural almadense, em detrimento das associações e colectividades, algumas delas com décadas de trabalho em prol do desenvolvimento progressista da cultura do povo; um Centro Cultural a que as principais colectividades chamavam centro comercial e onde eu também não gozava de qualquer consideração.
Ao longo dos anos, só raramente o fui vendo num transporte público ou numa qualquer actividade cultural, embora tomando conhecimento por outras pessoas do seu constante interesse pela Poesia e por uma espécie de activa militância cultural de franco-atirador. E nos dois últimos anos, graças à feliz existência e persistente acção da Associação dos Poetas Almadenses e das suas sessões mensais de Poesia Vadia, voltei finalmente a encontrar o Vitorino, a ouvi-lo dizer um ou outro poema seu e mesmo a ter com ele pequenas conversas sobre arte, literatura, política ou sobre o Debaixo do Bulcão, a publicação por que ele se bate corajosamente e onde tem dado a conhecer novos talentos poéticos.
Continua triste e tímido, sofredor e criador. Sente necessidade de se dar a conhecer como poeta, de juntar as muitas centenas de folhas em que tem vindo a falar de si, dos outros, da sociedade, do mundo e a reflectir sobre tudo isso consigo mesmo.
Por onde começar? Com a sua infinidade de versos, ele próprio sugeriu que se editasse uma selecção de poemas escritos há vinte anos, um dos vários ciclos em que se tem organizado a sua Poesia. Este tem um nome: CICLO DA SERPENTE -1989. Pediu-me agora opinião. Pareceu-me bem, como forma de iniciar a publicação da sua obra poética, o celebrar dessa efeméride, que assim se tornou motivadora do acto urgente de encetar a divulgação da desejada obra que, esperamos, tenha continuidade.

3.
Mas o poeta António Vitorino quer mais – opinião pessoal sobre o que nesse ciclo escreveu. Acedi com gosto pois creio não enganar ninguém ao afirmar que estamos perante um dos melhores valores da Poesia escrita por homens e mulheres de Almada.

Creio que não seria difícil ligar a generalidade dos seus poemas à vida atribulada e dolorida de que o próprio Vitorino nos fez um dia um amargurado relato no seu blogue. Como poderia ser um jovem a desabrochar alegre e esperançosamente à vida e ao futuro sofrendo terrivelmente da ausência de afectos e carinhos? Como vê-lo a cantar o amor, pleno de felicidade, vivendo um estranho isolamento no seio de gente que não sabe nem quer saber o que é amar e que ainda por cima cataloga de anormalidades as normais reacções desequilibradas pela enormidade do abandono, do desprezo, das violências e agressões, numa palavra, do desinteresse total pela felicidade do poeta?

Não é por aí, contudo, que desejamos ir. Vamos refrear os ideais de solidariedade pois não nos cabe analisar uma vida mas sim, neste caso, o Ciclo da Serpente.

4.
São dezassete poemas de 1989, oito anos depois de ter começado a guardar os poemas que escrevia.


No que então (1981) escrevia (penso que deve ter sido dessa época aquele que o ouvi dizer e me fez nunca mais esquecer o seu jovem autor) era deste género: «Tu cresces (…) e vives sempre rodeado de gente que se preocupa em te ensinar e educar segundo padrões feitos (…) Ensinam-te a cumprir as leis destas paragens (…) a arte de fazer carreira (…) a desdenhar o que não querem que entendas (...) a ser o que eles querem que sejas. Fazem de ti uma máquina, um robot, um ser civilizado, um ser bem educado».
Num ciclo posterior (mas antes do da serpente), por si denominado “Poemas biológicos”-1985, anunciava: «Quando mais tarde vier o dilúvio, retomarei o meu caminho», mas logo em 1986 é peremptório quanto ao caminho: «Já nada me espanta / morri!»
Afinal tratava-se certamente da morte de outros caminhos visto que, em 1989, no ciclo da serpente, diz já se encontrar no “caminho retomado”. Nele mostra-se senhor de uma Poesia onde é visível o homem que para sempre recusou ser robot civilizado e passou a ser simplesmente ELE, ou seja um EU onde a lucidez (essa atitude que para os formadores dos “padrões feitos” é estranha ou mesmo louca!) circula por todas as suas criativas veias e transforma-se em Poesia.
Ao contrário da serpente, que rasteja, o Poeta deixa a marca dos seus firmes passos (poemas) num caminho onde não encontraremos passarinhos cantando idílicas paisagens nem hinos à vida em que o desejavam condicionar. O seu canto, mesmo que desesperado, é à vida que tão bem conhece, uma espécie de navegação em mar agitado e onde, de bússola na mão, procura singrar a caminho de um futuro livre e feliz, mas talhado ou adaptado por si próprio.
Se assim não for, o mundo é o das serpentes, arrastando-se na “solidão do impossível”, por entre “o estertor das pedras”, em infindáveis “horas soturnas”. São as “serpentes dos dias ácidos”, que se escondem numa pesada “jaula dos silêncios” existente no “percurso” onde o poeta “inventa labirintos”.
António Vitorino, qual “pássaro em arestas”, gera neste ciclo de poemas um “momento introspectivo” e toma consciência de estar (diz ele) “vago em mim”. Nessas circunstâncias, qualquer um procuraria possivelmente preencher o vazio com álcool que, para si, é “flor de vício”. Ao contrário, como o afirma em vários dos seus poemas deste ciclo, sente dever dar “atenção à raiva” e não se refugiar em qualquer “dissimulação” e, porque possuído de um desejado “súbito entendimento”, vai simular o voo da contradição entre o frio da solidão e o “desejo ardente”.
Talvez que o Poeta pudesse, na “ingrata margem” esquerda da ribeira do amor, não aceitar o cinismo de “um tiro na cabeça / uma corda no pescoço”, mas sabe que tal “alegoria submersa” (…) “não é ainda o verso / o problema, o poema” e conclui: “ingrata margem / difícil poema”.
Vitorino anda afinal em busca do poema que o satisfaça, libertando-o das vagas altaneiras de todas as pressões e todas as violências que tentam submergi-lo. Começa por querer encontrar no poema uma face mas, se a tem, é uma “face difícil de contornar” pois as palavras parecem elas próprias ser o domínio da serpente e, “sob o gelo das palavras”, o poema esfuma-se, tanto recusando o “lirismo insuportável” como o “sarcasmo”.


5.
Este retrato possível (entre alguns outros de igual possibilidade) não é, em 1989, de forma alguma reivindicado por Vitorino. Por isso se interroga por entre as chamas do fogo em que se sente arder: “fogo insofismável, porquê assim?” e mergulha na dúvida – “que s
ei eu?”

Não é possível responder por ele. Noutros ciclos de poemas seus (que espero não tardem a ser publicados em livro) se encontrarão talvez as respostas ou indícios delas, simples sinais a balizar o caminho que conduzirá às soluções. O que sabemos – e isso todos sabemos, é que, desde muito novo, António Vitorino demarcou-se do lirismo avassalador da adolescência, dos temores indefinidos mas presentes na juventude e abordou afoitamente, já coerentemente adulto, as crises existenciais, tantas vezes inacessíveis à compreensão simplória dos espíritos “bem educados”, em trânsito para proveitosas carreiras, tão profundamente abominadas e escorraçadas pelo Poeta.
Muitos desses sinais encontram-se em versos deste Ciclo que são pérolas, como podemos exemplificar com estas originais e criativas: “que cintilante arrepio, que poema”; “muito cedo se fez corpo em teu dia”; “a pétala prossegue a fundamental contradição dos lírios”; “a sibilina maré de dor”; “insensata água, a do rosto / e da cidade”; “falam os poros por mim”; “voamos / para os ninhos mais recônditos do tempo”; “vago em mim, o pólen da palavra”; “deixa repousar as palavras / uma corda no pescoço faz exactamente o mesmo efeito”.
No fundo, este ciclo da serpente coloca-a (a serpente? a vida? a poesia?) “submersa sob o gelo das palavras”. Como fazer derreter esse gelo?

6.
Vinte anos depois, que é feito da serpente? O gelo derreteu? O Poeta continua a voar num “simulado fio de silêncio”, dissimulando corpos e desejo ardente? O fogo continua insubmisso? Há vinte anos eram (diz Vitorino) os poros que falavam por ele. Os poros do corpo ou os da sua Poesia?

Escusado dizer que ficamos ansiosos por receber em livro os ciclos de poemas que antecederam e, sobretudo, os que sucederam ao Ciclo da Serpente. para verificarmos se manteve nos seus poemas curtos, plenos de complexidades, umas vezes sarcásticos, outras roçando o dramatismo, a serpente viva, ou seja (parece-me) o ácido sulfúrico do tempo e do corpo activo.
Diga-se em abono da verdade que gostaríamos de ver a sua Poesia banhada de sol, prateada de luar, liberta da serpente, rejuvenescendo uma vida de tão longos anos num tempo tão breve. Que a essa claridade desejada não se oponha aquele auto-retrato do Poeta que, sem data, nos veio cair nas mãos e nos fala da “luta acabada em que me sinto”. Nele confessa de forma surpreendente: Se é poema ser pai do que em mim finto / então gosto mais de ser guarda-redes / ver o mundo passar, e às vezes dar para defender, / é assim que me pinto”.
Estará por aqui a sombra de Pessoa (O poeta é um fingidor…)? Que significado dar aqueles: me sinto - em mim finto - me pinto?
Prefiro supor que o Poeta António Vitorino atravessou todos estes anos de alegrias angustiosas e das angústias psíquicas criadas por uma louca e decrépita sociedade a fintá-la pintando-a nos seus poemas e sentindo que tinha razão ao escrever em 1981, no seu poema “O SONHO NASCE”:
(…) e assim mesmo o sonho nasce: / de sobressaltos ferido / onde as árvores persistem”

É isso mesmo, Vitorino! Que o seu sonho, há tanto tempo nascido e perseguido, persista e saia vencedor, mesmo que ferido por tantos sobressaltos. Cuidado! É a sua própria Poesia que o exige.

Alexandre Castanheira